domingo, 17 de março de 2013

A CORRIDA DE ANDREAS


Todo santo dia, aquele garotinho, fazia o mesmo percurso, de manhã bem cedo. Já era conhecido por onde passava. Muitos nem sabiam por que ele ia de mochila, merendeira, tralhas e mais tralhas, esperar o ônibus sozinho, quase madrugada. Nem imaginavam, para onde aquele garoto, sozinho, deslocava-se.  
Era Andreas, um garoto que pensava viver dentro dos preceitos éticos que sempre ouvia dizer, como o certo.
Andreas praticava Atletismo. Experimentou todas as modalidades possíveis, mas as que colocavam com maiores chances de se destacar, era nos 100 metros rasos e no salto triplo. Treinou por anos, para vencer. Horas e horas, tentando melhorar suas marcas pessoais, tanto no tiro, quanto no salto. E estava progredindo a olhos vistos.
Então, um dia, seu treinador chamou a equipe e disse que iria inscrevê-los na competição infantil, cada um, em sua modalidade.
Andreas entusiasmou-se tanto que dobrou as horas de treino.
Dia marcado, lá estavam todos. Chegou a hora de competir. Andreas estava visivelmente calmo. Foi dada a largada, ele bateu o recorde da pista, do estado e quase se aproxima do recorde do campeão nacional.
Na hora do podium, lá estava Andreas com sua medalha e seu louro da vitória.
Cá embaixo, Zé Mané, um menino que não gostava de treinar, só ia quando queria e mesmo assim, com motorista particular e tudo o que tinha direito, aprendeu a dar “jeitinho”, ou passar a perna nos outros. Seu esporte preferido.
Na hora do podium do salto triplo, de novo, Andreas lá encima.
Zé Mané não se conformava com aquilo. Afinal, os pais dele, tinham condições financeiras e ele não precisava se esforçar, pois deveria vencer, talvez por osmose.
Passado um tempo, nova competição, lá estava Andreas religiosamente, treinando.
Zé Mané descobriu uma maneira mais fácil de ganhar. Ao invés de treinar na pista, preferiu treinar como derrubar o adversário, sem competição.
Fez-se amigo de Andreas e sem que ele soubesse, dizia barbaridades contra ele, pelas costas.
Andreas seguia seu caminho, enquanto Zé Mané articulava - como virou substantivo, ou coisa assim, essas palavras que não precisam de complemento, como “causar” -, uma maneira de deixá-lo longe das pistas, para vencer, sem esforço, com suas tramoias que era bem de seu estilo.
Nova competição, novos louros, tanto podium que Zé Mané quase estoura por dentro, ao vê-lo ali.
Pela capacidade de Andreas, era apropriado, se fosse possível, de ele ganhar ouro, prata e bronze, na mesma competição, visto o nível que alcançara.
Então Zé Mané apelou para o discurso do coitado, muitas vezes, levado muito a sério, por quem também, tem essa mania de vencer, pela fraude.
Zé Mané que ia de motorista particular, que tinha todas as vantagens além de Andreas, passou a ser o coitado e por conseguinte, Andreas começou a ser visto como o mau, alguém que só queria vencer, o egoísta. Inverteram-se de propósito, os papéis.
Para mim, isso é lógico. Quando se prepara mais do que os outros e às vezes, têm-se até vantagem genética, é mais fácil ganhar. E por que, permitir que o outro que não se esforçou, que pensa que a esperteza é melhor do que o suor, vença, só para fazer demagogia, ou um agrado em quem não merece? Mas isso é uma longa discussão. Acho até que envolve questão de religião e política ideológica. O tal de “o importante é competir!”
Sol, chuva, dia, noite, lá estava Andreas, treinando. Enquanto Zé Mané, quando o fazia, tinha de largar a escola, tinha de ganhar presentes, mesmo assim, muitas vezes, fazia apenas o que queria, como se o mundo fosse só dele, ou pior, feito só para ele. De outra forma, Andreas também se destacava nas notas, estava sempre buscando mais do que era exigido, enquanto Zé Mané procurava sempre, burlar os exercícios de classe, os exames da escola, ser mais esperto até do que os professores.
Andreas estava ficando sem adversário. Ele competia contra si e contra o relógio, pelo menos no esporte individual, a coisa mais difícil, até mesmo do que competir com adversário forte. Não havia quem o confrontasse.
Então, nova competição, o técnico de Andreas o inscreveu, 100 metros rasos, mas a coordenação, envenenada com as histórias de Zé Mané que se via como injustiçado e Andreas, como o Diabo, colocou um obstáculo à participação dele. Todos os outros iriam perfazer 100 metros rasos, mas, visto que Andreas estava acima de todos, ao invés de se melhorar o nível dos outros, só se permitiria a presença de Andreas se ele fizesse na mesma prova, 110 metros com barreira, na raia externa e se chocasse-se com algum adversário, seria desclassificado. O técnico acreditava nele e o inscreveu mesmo assim.
Lá foram para a disputa. Zé Mané conseguiu sair na frente, estava radiante, pela primeira vez, tinha chance de vencer Andreas. Não foi ultrapassado, nenhuma vez, estava sentindo que desta vez, conseguiria vencer, mesmo que não tivesse despendido nenhum esforço pessoal.
Quase no fim, Andreas tirou todo o estoque de gás que tinha, deixou de respirar nos metros finais e superou os adversários, vencendo outra vez.
Já no salto, a condição, era ele levar uma mochila nas costas, com um peso equivalente ao seu.
Era barbada. Todos conseguiram saltar mais longe do que Andreas. Mas tinha a terceira e última tentativa. Andreas pensou, preparou, respirou e começou o trote, ou a trotar, quando o estádio levantou, como quando o time da gente faz um gol. Andreas havia ido mais longe, do que todo mundo, mesmo nas condições que lhe foram impostas.
Zé Mané não se conformou. Concebeu outro plano, não iria ser derrotado, sem luta. Contratou a preço de ouro, metade do estádio, para quando Andreas fosse subir ao podium que fosse chamado de louco, maluco, o discurso do incapaz que quer vencer, com medo de quem  acha melhor do que ele, joga-o contra a sociedade. Metade do estádio começou a gritar maluco, paga, a outra metade, de graça, como sempre, acompanhou, sem saber o que estava acontecendo.
Andreas venceu tudo, apesar de tudo, mas não venceu o estigma de louco, de maluco, de pinel que a torcida gritava e ecoava pelo estádio e depois, para fora.
Desde então, Andreas era segregado por onde passava, pois pegou de verdade, o estigma de pessoa marginal, ao lugar comum. Mesmo que não seja, por se ouvir falar, o estigmatizado, acaba sendo alguém que mete medo nos outros, por ter feito medo a quem achou que não o poderia vencer por outros meios.
Por algum tempo, Andreas decidiu se afastar de todos, para ver se aquela pecha de maluco, de louco, era esquecido e ele assim, voltaria a competir. Nada. Mesmo Andreas longe, Zé Mané continuava a se alegrar, em derrubá-lo. Havia virado mania da qual Zé Mané não conseguia se desvencilhar.
Finalmente, o técnico de Andreas, tomou uma decisão que seria ruim para a equipe, mas ótima para Andreas. Entrou em contato com um olheiro internacional, mostrou os recordes, as capacidades de seu pupilo e decidiram que iria treinar em outro país e se fosse aprovado, iria ser contratado para ficar por lá mesmo.
Em pouco tempo Andreas superou os adversários internacionais que o tinham, como meta para ser alcançado. Quando subia ao podium, era aplaudido, idolatrado, pelos próprios adversários que decidiram seguir seu exemplo de treino. Nunca mais, Andreas foi visto como maluco, nem como qualquer coisa, além do que ele realmente é.
De repente, uma das muitas competições internacionais das quais participava, Andreas encontrou Zé Mané. Cada um, representando a sua região, ou para melhor esclarecer, Andreas representava a região que o acolheu, como não havia sido feito, na sua de origem.
Nem deu para se encontrarem nas pistas, pois, enquanto Andreas passava de fase, Zé Mané que era considerado o melhor de sua região, ficara em último lugar, nas classificatórias. Enquanto Andreas continuava avançando, sem parar, até quem sabe, o infinito.
Vitórias e mais vitórias, contratos de propaganda, Andreas decidiu visitar sua terra que há muito, não o fazia. Tinha ideia de abrir escolas, onde se privilegiasse, ao mesmo tempo, o estudo, o esporte e a cultura, de uma maneira integral.
Foi uma honra, saberem de antemão, da presença ilustre de Andreas, voltando para casa, trazendo todo tipo de publicidade possível, consigo, além da bagagem, formadores de opinião do mundo inteiro.
Banda de música, bandeirinhas, batedores, era uma verdadeira festa. Todos queriam cumprimentar Andreas. O maluco que estava sendo tratado como um Deus do Olimpo. Desfile em carro aberto, trajeto, tudo, escolhido a dedo, por Zé Mané. De repente, na principal avenida da cidade, Andreas teria de mostrar como conseguia ser tão veloz. Desceu do carro que o levava, calçou seu tênis e acenou para o público presente. Quando perfez 20 metros, de repente, rajadas de fuzis, no automático. Andreas foi cortado ao meio. Ninguém mais fora atingido.
E assim, esta terra, continuou a dar mais valor ao discurso do coitadinho, a fazer concursos públicos, não para avaliar capacidades, mas para dar vagas aos filhos da elite, com representantes em todas as áreas, que eram bem vistos e bem quistos, em sua região, mas quando tinham de enfrentar competições internacionais, continuava a enviar gente como o Zé Mané que podia não ser grandes coisas, mas ia lá, para fazer o “seu melhor tempo pessoal”, visto que nos treinos não podia fazer, porque preferia ser competente, em viver do Marketing Pessoal, da rasteira impessoal, para manter a falta de competição, como o melhor exemplo do mundo.
Andreas nem pode ser enterrado em sua terra, devido a tanta burocracia que colocaram encima. Então, nova manifestação de apreço. Todos os outros países, principalmente mais desenvolvidos, onde se privilegia a capacidade, ao invés do conchavo, faziam questão e o ter em seu território.
Zé Mané não se conteve e decidiu quebrar tudo. Destruiu, como era de sua índole e se desculpou depois, com um discurso onde dizia que tinha sido pego por extrema comoção, ao saber da morte de Andreas, seu grande amigo.
Saiu em revistas, deu entrevistas, virou celebridade, nas costas de Andreas. Fazia questão de dizer que eram amigos, desde quando treinavam juntos e iam, juntos, para o treino.
Ganhou medalha pelo cômputo da obra. Era amigo de Andreas.
Quando voltou à sua terra, três pistoleiros se aproximaram de Zé Mané, para cobrar a dívida pelo serviço feito. De eliminar aquele que queria vencer, por competência. Andreas. E aquilo que pagou, para ele, agora, famoso, por ser amigo de Andreas, era mixaria.
Virou candidato nas eleições que se seguiram, com o discurso de “PAZ, HARMONIA E ESFORÇO PARA FAZER DESTA TERRA, UMA SUPERPOTÊNCIA”. Venceu. Era amigo ilustre de Andreas.
Só a sua terra, não conseguia ir para a frente. Seus filhos, decidiram estudar o básico e ficaram aquém ao conhecimento do pai, enquanto a terra dos outros, o saber, é fator preponderante, para se procurar melhorar a qualidade de vida e tudo o mais. Seus netos, nem à escola, iam. A cada nova geração, ao invés de avançarem, além de seus pais, regrediam, visto que a meta, era ser esperto, já estavam garantidos, com os conchavos para as elites, que eles pertenciam. Não precisavam mostrar-se eficazes. Eram privilegiados. De repente, Zé Mané viu seu chão abrir, diante de seus olhos. Sua filha preparada para sucedê-lo, envolveu-se com más companhias, como é comum os pais dizerem, quando os filhos não têm personalidade e são capazes de tudo, para se integrarem aos grupos e teve uma overdose fatal. De outra feita, seu neto querido, envolveu-se em um acidente, onde matou 15 pessoas, dentro de casa. Mas Zé Mané, era calejado, sabia viver de discurso. A filha for vítima de ciúmes de um pretendente não correspondido. O que deixou a sociedade, com vontade de linchar o malvado. O neto, um rapaz esforçado que por inveja de algumas pessoas da sociedade, fizeram a casa ir ao encontro do carro dele, para deixar em maus lençóis, o nome da família. E assim, Zé Mané, era sempre eleito o exemplo a se seguir. Nem que para tanto, a sociedade continuasse no mesmo patamar. Sempre. O exemplo de Zé Mané, do individualismo, sobre todas as coisas. Amen! Cada tombo que levava, era uma maneira de se mostrar, mais coitado, para os outros e assim, venceu na vida. Grandes vitória!
Em homenagem a Zé Mané, deu-se o nome desta regão, de Babacolândia! Onde, a principal capacidade exigida para ser cidadão, era ser esperto. Vivia de incentivos, de ideias alheias, sempre com o pires na mão, como mendigo, que ao invés de procurar suas capacidades, acha que a culpa de se dar mal, é sempre alheia, nunca assume.
E Andreas morreu, deixando para os outros, as metas a se perseguir. Mas em Babacolândia, ninguém lia, mesmo que comprasse aos montes, no dia de autógrafo, onde Zé Mané assumiu o lugar do “amigo”.  

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