Jorge era de uma tribo do Alto Rio Negro que decidiu morar sozinho, próximo à Capital. Jorge Tucano.
Todos os dias, plantava seu caminho, caçava e
pescava sua comida, preparava-a, limpava e cuidava da casa, de suas roupas, criava
in vitro, novas vidas que estavam à
beira da extinção, mas quem passava por aquele caminho, achava que ele era um
imprestável social. Com tanta saúde, estava fora do mercado, era alguém que não
se integrava ao sistema. Não podia ser aceito como pessoa. Não era gente!
Quando Jorge acordava, muito do que havia plantado,
muito do que havia criado em viveiros, estava morto, estava destruído.
Trabalho de verdade, era cortar árvores, era matar a
flora e a fauna, para ganhar dinheiro. Trabalho era sempre visto, como sinônimo
de ganhos, não como algo transformador.
As famílias recomendavam aos seus filhos que
passassem longe da casa de Jorge e se por um acaso, cruzassem com o caminho
dele, não dessem ouvidos e se possível, mudassem de calçada.
Jorge continuou a ser visto como alguém que não
produzia, não fazia nada de útil.
As pessoas já nem o olhavam, mas todos tinham
certeza de que ele era alguém muito feio, sujo e improdutivo. Não tinha aquele
emprego formal. Sim, muita gente tem emprego, mas também, não tem aquele
emprego, é tão mal vista tão invisível socialmente, quanto Jorge. Nossa
sociedade odeia o que não pode ser palpável, contabilizado, enfim, que não se
reverta em presentes e ganhos.
Jorge não se deixava vencer por essa visão
consumista de trabalho. Todo dia plantava seu caminho, criava seus víveres
cuidava da casa, da roupa, de si e do mundo.
Certo dia, Seu Jofre, CEO de uma empresa que
comprava carbono, o REDD, visitou a cidade e passeando por sobre a região, quis
saber, que floresta era aquela, que peixes eram aqueles, que bichos eram
aqueles que do alto, eram visíveis. Armando, o Diretor Executivo da filial na
região, disse que era coisa daquele desocupado, que vivia distante da
realidade. Seu Jofre pediu ao comandante da aeronave, para descer o mais
próximo possível, de onde pudessem ir até àquela pessoa responsável por aquilo
tudo. E assim foi feito.
Lá chegando, Armando ainda olhava para Jorge, com
desdém, como se pudesse brincar com a vida alheia, só por uma questão estética.
Mas quando Seu Jofre começou a conversar, para espanto dos demais, Jorge
mostrou muita sabedoria, inclusive, como tratar com pessoas tão importantes, na
visão de Armando. O que apesar de todos os cursos, ainda o fazia suar nas mãos
e gaguejar, em alguns momentos.
Perderam a tarde inteira, segundo a concepção de
Armando, conversando sobre frivolidades. Seu Jofre quis saber, como ele
sozinho, havia salvado tanto carbono. Jorge explicou seus métodos, sua visão de
mundo. Armando queria corrigi-lo, quando achava que estava falando tolice, mas
Seu Jofre pediu que não fossem interrompidos em seu diálogo bilateral.
Pronto, a empresa de Seu Jofre iria pagar para
Jorge, a captura de carbono e ainda sobrava, para lucrar com o restante que
havia plantado e criado, para receber de outras empresas que Seu Jofre
pessoalmente, iria recomendar que procurassem Jorge Tucano para negociar.
Armando achou que era um despautério e que o patrão, o estava relegando, para
dar razão àquele pobre Diabo. Mas como bom empregado, resolveu engolir em seco,
pois não saberia como lidar com a vida, fora do mercado.
Desde então Jorge virou capa de revista, não tinha
mais sossego de tantos compromissos agendados, entrevistas, palestras, estava
pelo menos, dando muito trabalho. A outros.
Logo a comunidade que o rejeitara, começou a
enxergá-lo. Enxergá-lo como gente, como alguém com rosto, com características
pessoais. Até que não era tão feio, como fizeram sua caveira.
Jorge não tinha mais tempo para nada, além de
atender quem lhe batia à porta. Eram repórteres, cientistas, sem contar, pais
que levavam suas filhas, para ver se Jorge desposava-as. Ele realmente não
estava entendendo! De repente, virou ídolo, virou uma pessoa a quem a sociedade
queria em suas casas. Foi uma virada muito rápida, para a cabeça de quem estava
alijado do convívio de seus pares.
A cada passo que dava, tinha quem quisesse tirar
foto com ele, levava uma cantada daquelas de mulheres e até de homens, queriam
de alguma maneira, estar próximo de quem já haviam dito para se afastar. As
crianças, mais do que ele, não entenderam, quando os pais recomendavam que elas
se aproximassem daquele homem que antes era visto como mal encarado e até
perigoso de se estar próximo.
Um dia, Dona Iolanda, a mais fervorosa líder de
campanhas contra aquele homem que não trabalhava, não produzia, sujo e
maltrapilha, na sua visão, bateu-lhe à porta. Logo que Jorge abriu-a, estavam
ela, marido, filhos, papagaio, periquito, cachorro, gato, enfim, um séquito que
não tinha fim. Ela queria que Jorge escolhesse sua filha mais viçosa, como sua
companheira. Tinha medo que ele pudesse se engraçar por outra e já tinha todos
os planos para o noivado, o casamento, já havia, inclusive, pedido a Deus, suas
bênçãos sobre os nubentes. Jorge era lindo, como nenhum outro!
Jorge não se conteve e falou à Dona Iolanda que ele
continuava do mesmo jeito, a ser a mesma pessoa de sempre. Por ora, mais do que
antes de ficar famoso, não trabalhava de verdade. Não podia se mover, com tanta
gente à sua volta. E ele ficou famoso, por, mesmo não tendo emprego fixo, tinha
muito trabalho para fazer, como demonstrava por tudo o que fez. Por ora, mais
do que antes, não estava realmente produzindo nada, apesar de estar ganhando
muito. Eram mais royalties, do que
produção concreta, não entendia. Seu modo de higiene continuava o mesmo, os
mesmos produtos cosméticos que usava antes, continuava a usar hoje. E, se era
feio antes, não havia de ter mudado, mesmo porque, nem dera tempo de retocar
alguma falha em sua imagem e no seu caráter.
Por que aquela sociedade que o discriminou tanto,
quando trabalhava de verdade, hoje, o quer próximo, quando não faz mais nada,
vive do passado?
Georgete, uma criança pura de coração, mas muito
astuta, em perceber as coisas, até mais do que os adultos em seu derredor,
falou e disse:
- Tio, o problema não é trabalhar! Isso, eles nem
querem saber. O problema, é poder, é ter, é mostrar que se pode comprar,
consumir além do necessário! Antes, o tio plantou uma floresta inteira, criou
alevinos e quando estavam no ponto, jogou-os nos lagos em volta para
preenchê-los de vida, mas, como não tinha conta bancária, era invisível aos
olhos de uma sociedade que insiste em crer na vida eterna, mas dar muito mais
valor, ao materialismo consumista mundano. Hoje, mesmo que o tio não faça mais
nada, mas tem como se sustentar e sustentar os luxos de muitos outros. Então o
tio virou o ídolo de muita gente que não se interessa de verdade, no emprego alheio,
mas no resultado financeiro que é visível. O coveiro, o gari, o pedreiro, o
faxineiro e tantos profissionais que têm emprego fixo, são tratados, como
coisas, como se não existissem, são invisíveis a muita gente, mesmo que estejam
ao lado. Já o traficante que todos sabem que não faz nada, não produz além de
morte, muitas vezes é convidado para a casa de todo mundo, em aniversários,
casamentos, datas importantes, por levar presentes caros. E é muito bem visto.
Entenda tio, a questão, não é emprego, mas o emprego do que se tem como
riqueza. Ninguém de verdade, quer saber se José é empregado, ou não. Mas se José
mora longe, é visto como periferia, sem poder aquisitivo que satisfaça as
necessidades de uma sociedade fútil, ele é um Zé qualquer, um Zé Ninguém. Já se
o José ganhar dinheiro com golpes, conchavos, matando gente, roubando merenda
escolar e pirulito da boca de criança, tirando para si, mesmo que deixe muitos
na miséria, não importa, ele vira o Doutor José de Tal. Entendeu? Trabalho sem
remuneração é vagabundagem. Já, emprego sem nada mais construtivo do que o
passar das horas, se remunera bem, é o que há de mais útil para muita gente!
Menina esperta essa Georgete. Se eu fosse um homem
que quisesse espalhar minha semente pelo mundo, como muitos que se acham muito
importantes, Georgete seria minha quarta criança a ser gerada, depois do
Asdrúbal, da Abigobalda e do Astolpho Dido. A pequena Lady Gagá.
Jorge se retirou, recolheu-se a sua antes,
insignificância, para pensar como agir em uma sociedade, onde se vê muito a
capa e se joga fora o conteúdo. Uma sociedade que se torna vazia, por valorizar
muito a imagem e pouco, a obra em si. Que se acostumou a comprar obras de arte,
não pela arte em si, pela satisfação que gera, pelo valor estético, mas pelo
escândalo do autor, pela propaganda dos amigos, pelo valor de revenda de
mercado. Compram-se riscos incompreensíveis, porque alguém disse que vale
muito, não porque se gostou realmente. Ouve-se certa música, não por trazer
prazer a quem escuta, mas porque virou hit
nos meios de comunicação e só. Discute-se uma obra literária, não pelo o que
ela transmite em si, mas a partir de um erro gráfico, ou de uma palavra fora do
contexto. Frequenta-se igreja, não pela necessidade de procurar respostas para
si, mas porque dá votos, ou audiência. Uma sociedade que não vive sem
bugigangas por todo lado que por isso mesmo, ou por não saber usá-las, faz-se
cada dia mais vazia.
Jorge era o cara mais lindo para os conceitos e
preconceitos de uma sociedade que só vê o bolso, antes da alma e do poder de
resolver grandes problemas. De repente, do nada, o não ser, virou ser. Da
Química Inorgânica, fez-se vida. Pelo menos, neste caso, dava para explicar. Um
mar de dinheiro, mesmo que seja de lama, faz qualquer um, virar gente.
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